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Reprovação descrita.
A Escritura Sagrada mostra e recomenda o privilégio desta graça eterna e imerecida da nossa eleição, especialmente quando, além disso, testifica que nem todos os homens são eleitos, mas que alguns não o são, ou seja, Deus os deixou na sua miseria. De acordo com Seu soberano, justo, irrepreensível e imutável bom propósito, Deus decidiu deixá-los na miséria comum em que se lançaram por sua própria culpa, não lhes concedendo a fé salvadora e a graça de conversão. Para mostrar Sua justiça, decidiu deixá-los em seus próprios caminhos e debaixo do Seu justo julgamento, e finalmente condená-los e puni-los eternamente, não apenas por causa de sua incredulidade, mas também por todos os seus pecados, para mostrar Sua justiça. Este é o decreto da reprovação o qual não torna Deus o autor do pecado (tal pensamento é blasfêmia!), mas O declara o temível, irrepreensível e justo Juiz e Vingador do pecado.
Este artigo é, provavelmente, o mais discutido de todos os artigos dos Cânones de Dordt, porque aqui se fala sobre a “reprovação”. A doutrina da reprovação sempre foi uma pedra de tropeço para muitas pessoas. Por causa disso, é bom ler o texto desse artigo cuidadosamente. É isso que vamos fazer aqui.
O artigo começa dizendo que “A Escritura Sagrada mostra e recomenda o privilégio desta graça eterna e imerecida da nossa eleição”. Note que este artigo logo aponta para a Sagrada Escritura, a Palavra de Deus! Aqui não se fala sobre opiniões humanas, mas sobre revelações de Deus a respeito da nossa “eterna e imerecida eleição”. Na edição original tinha referências a textos nas margens da folha. Por exemplo, At 14,16; Rm 9, 15-16; Rm 9, 22; Ef 1, 4; e 1 Pe 2, 8;
Vamos dar uma olhada nesses textos. Em primeiro lugar, Ef 1,4. Esse texto fala (vs 3) sobre o Deus e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo (vs 4), assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele. Esse texto é um texto fundamental, que fala sobre a predestinação. Três elementos se destacam:
1) Deus escolheu um certo nunmero de pessoas;
2) Ele fez isso antes da fundação do mundo;
3) Ele não fez isso porque essas pessoas eram santas e irrepreensíveis, mas para que fossem santas e irrepreensíveis. O motivo da eleição não está em nós (uma fé prevista por Deus), mas em Deus!
Romanos 9, 15-16 confirma isso. Lá está escrito que Ele diz a Moisés: “Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão”. Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. Este texto deixa bem claro que o motivo da eleição está em Deus, na misericórdia dEle.
Logo depois deste texto, fala-se também sobre a reprovação. Paulo usou o exemplo do Faraó do Egito e disse (9,17): “Porque a Escritura (!) diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ELE misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.”
Ligado a isso está, também, Rm 9, 22, que fala sobre os ‘vasos da ira’ e os ‘vasos da misericórdia’. Paulo faz um apelo à nossa consciência e diz: “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o Seu poder, suportou com muito longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia , que para glória preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentro os judeus, mas também dentro os gentios?”.
E não é somente Paulo que pensa assim, mas o apóstolo Pedro também fala dessa forma. Em 1 Pe 2,8 ele fala sobre Jesus Cristo, que é a pedra angular. Porém, ele se tornou pedra de tropeço e rocha de ofensa para os descrentes. “São estes os que tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos (por Deus!). Mas os crentes (dos gentios) são raça eleita (vs 9), antes não faziam parte do povo de Deus (vs 10), mas, agora, “vós sois povo de Deus, que não tinheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia”.
Existem mais textos que falam sobre a predestinação e a reprovação, mas, como a Bíblia diz: a verdade se estabelece pelo testemunho de duas testemunhas. Então, o testemunho dos apóstolos Paulo e Pedro, ambos guiados pelo Espírito de Deus, basta para explicar o que o art. 1,15 diz: “A Escritura Sagrada mostra e recomenda o privilégio desta graça eterna e imerecida da nossa eleição, especialmente quando, além disso, testifica que nem todos os homens são eleitos, mas que alguns não o são, ou seja, Deus os deixou na sua miseria.
Isso me leva a uma outra observação. Na minha edição dos Cânones de Dordt (2018), eu coloquei uma rodapé para explicar essa expressão do Sínodo de Dordt. Esta expressão: “Deus os deixou em sua miséria” A ideia é que Deus escolheu (ativamente) alguns, e a consequência dessa eleição é que os outros não foram escolhidos. Deus os deixou em sua miséria. Ele “passou” os outros. Os Cânones não querem dizer que ele rejeitou (ativamente) os outros. Isso significaria que existem duas decisões, uma da eleição e outra da reprovação. Existem crentes que defendem isso, mas o Sínodo de Dordt, não, e por causa disso ele já tinha dito, de propósito, no Artigo 8, que existe um só decreto de eleição.
O que isso quer dizer? Vou usar um exemplo: quando eu escolho uma pessoa pobre de um grupo de cinco para ajudá-la, eu passo/deixo as outras. A escolha de uma só pessoa tem consquências para as outras. As outras não foram selecionadas; elas foram deixadas na miséria. Antigamente o texto disse: “elas foram passadas na sua mirseria”. Alguns não entenderam essa expressão, então substituimos a palavra “passadas” pela palavra “deixadas”. O resultado é o seguinte: “Nem todos os homens são eleitos, mas que alguns não o são, ou seja, Deus as deixou na miséria.”
O texto diz, também: Deus decidiu deixá-los na miséria comum em que se lançaram por sua própria culpa”. Para entender isso bem, deve-se voltar para o primeiro artigo deste capítulo. O primeiro artigo fala sobre a miséria comum e diz: Todos os homens pecaram em Adão e estão debaixo da maldição de Deus e são condenados à morte eterna. Por isso Deus não teria feito injustiça a ninguém se Ele tivesse resolvido deixar toda a reça humana no pecado e sob a maldição e condená-la por causa do seu pecado, de acordo com estas palavras do apóstolo: “…para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus… pois todos pecaram e carecem da glória de Deus…” (Rm 3, 19.23), “…O salario do pecado é a morte…” (Rm 6,23).
Então, a miséria é comum. Todos os homens pecaram em Adão. Todos estão debaixo da maldição de Deus e todos são condenados a morte eterna. Qualquer homem está morto em pecado e não pode se justificar diante de Deus. Então, diz o segundo artigo citando as Escrituras: “Nisto se manifestou o amor de Deus em nós, em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.
E para que os homens sejam conduzidos à fé, Deus envia, em sua misericórdia, mensageiros desta boa nova, a quem e quando Ele quer. Assim se manifesta o amor de Deus em nós! Porque a verdadeira fé não é um elemento que está, por natureza, dentro de nós. A fé vem de Deus. Veja Ef 2,8: “Pois pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”. Alguns recebem, e outros não.
Como na situação de Lídia, a vendedora de púrpura. (At 16: 13-14). Paulo pregou para um grupo de mulheres, mas somente Lídia escutava, porque O SENHOR lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia. Então O Senhor escolheu Lídia, e deixou as outras mulheres em sua miséria, não lhes concedendo a fé salvadora e a graça de conversão.
Aplicando a leitura do artigo 1.15 aqui, podemos dizer: Para mostrar Sua justiça, Ele decidiu deixá-las em seus próprios caminhos e debaixo do Seu justo julgamento, e finalmente condená-las e puni-las eternamente, não apenas por causa de sua incredulidade, mas também por todos os seus pecados, para mostrar Sua justiça. A incredulidade e a resistência dessas mulheres era um efeito da sua natureza pecaminosa, que estava dominando o coração delas. Elas ouviram o evangelho. Deus enviou seu mensageiro, mas elas não acreditaram nele. Essa incredulidade não é uma obra de Deus. A fé é um dom de Deus; a incredulidade não é. A incredulidade é o pecado do homem. João diz, no seu evangelho (3,19): O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras”.
Finalmente, o artigo 15 diz: Este é o decreto da reprovação, o qual não torna Deus o autor do pecado (tal pensamento é blasfêmia!), mas O declara o temível, irrepreensível e justo Juiz e Vingador do pecado. Os Remonstrantes sempre diziam isso: que essa doutrina da reprovação tornava Deus o autor do pecado. O Sínodo não quer dizer isso, porque achou tal pensamento uma blasfémia! Quem tem problemas com a doutrina da reprovação porque acha que essa doutrina torna Deus o autor do pecado deve parar e pensar nas palavras do Sínodo, porque com certeza ele concorda com a observação do Sínodo de que tal pensamento (Deus é o autor do pecado) seria blasfêmia!
O Sínodo de Dordt rejeitou essa acusação de blasfêmia. Por causa disso ela fez o seguinte observação no final, na conclusão, dizendo: “O Sínodo de Dort julga a presente declaração e as rejeições como tiradas da Palavra de Deus e conforme as Confissões das Igrejas Reformadas. Assim, torna-se evidente que alguns agiram muito impropriamente e de modo contrário à toda verdade, equidade e amor, desejando persuadir o povo do seguinte:
– “A doutrina das Igrejas Reformadas faz de Deus o autor injusto do pecado, um tirano e hipócrita; é nada mais do que um renovado Estoicismo, Maniqueísmo, Libertinismo e Islamismo”.
– “A mesma doutrina ensina que Deus tem predestinado e criado a maior parte da humanidade para a condenação eterna só por um ato arbitrário de Sua vontade, sem levar em conta qualquer pecado”.
– “Da mesma maneira pela qual a eleição é a fonte e a causa da fé e boas obras, a reprovação é a causa da incredulidade e impiedade”.
Essa são as acusações dos remonstrantes; porém, após expor essas acusações, o Sínodo declarou claramente: Há muitas outras coisas semelhantes que as Igrejas Reformadas não apenas não confessam, mas também repelem de todo coração!