Os Arminianos são Reformados?
Roger E. Olson, Teologia Arminiana. Mitos e Realidades. (Editora Reflexão 2013);
Já por muitos anos registrei que a Editora Reflexão está publicando muitos livros em favor do Arminianismo e contra o Calvinismo. Sendo missionário das igrejas reformadas, sinto a necessidade de reagir. Já participei de várias conferências aqui no Brasil para comemorar os quatrocentos anos do Sínodo de Dordt; li vários livros pró e contra o calvinismo, e este livro de Olson ficou na minha gaveta com o propósito de ser avaliado.
Eu faço parte do público-alvo desse livro. Olson escreveu no início que “este livro é para dois tipos de pessoas: 1) aqueles que não conhecem a teologia arminiana, mas gostariam de conhecê-la, e 2) aqueles que pensam que sabem acerca do arminianismo, mas que de fato não sabem”.[1] Eu tinha conhecimento do arminianismo clássico, mas estava também confuso, observando todas as variantes do arminianismo. Por causa disso comprei esse livro, porque queria conhecer o verdadeiro arminianismo e seus mitos e realidades. Então, li o livro e aprendi uma coisa: o arminianismo é mais complicado que o Calvinismo. No meio dos calvinistas podemos distinguir várias denominações como, por exemplo, as igrejas reformadas e as igrejas presbiterianas, que têm eclesiologias diferentes, mas as mesmas confissões; as igrejas arminianas não tem uma só confissão que as une, e por causa disso há uma grande variedade de igrejas arminianas. Depois falarei mais sobre isso, mas já quero dizer agora que Olson abriu os meus olhos para a diversidade e me deixou mais prudente.
Mas, como sempre, a força de alguém é muitas vezes também a sua fraqueza. Digo isso assim porque Olson quer abrir os olhos para a diversidade no meio dos arminianos e chamar a atenção para o verdadeiro arminianismo, mas ele mesmo não é muito sensível neste ponto quando fala sobre as igrejas reformadas. Num certo momento Olson disse: “Não impute a outros crenças que você, logicamente, considera como atreladas às crenças alheias, mas que estes explicitamente as negam”.[2] Concordo completamente com isso, mas Olson mesmo peca continuamente contra essa regra se fala sobre as igrejas reformadas. Em vez de avaliar as igrejas reformadas de acordo com os seus documentos oficiais, como, por exemplo, os Cânones de Dordt, ele age contra certas ideias de Hiper-Calvinistas ou contra as crenças de certas igrejas reformadas extremamente ortodoxas, que confessam um tipo de superlapsaria-nismo, que nunca foi definido assim pelas igrejas reformadas que se reuniram no sínodo de Dordt; sei que os remonstrantes clássicos não concordavam, de jeito nenhum, com o supralapsarianismo, mas devemos ser honestos e admitir que o Sínodo e Dordt não seguiu essa linha teológica mais extrema, mas optou por a linha teológica mais moderada, no caso, o infralapsarianismo, que é mais bíblico; o sínodo até criticou uns supralapsarianos por causa de certas expressões duras que tinham usado.
O Sínodo rejeitou, por exemplo, a seguinte acusação: “A mesma doutrina ensina que Deus tem predestinado e criado a maior parte da humanidade para a condenação eterna só por um ato arbitrário de Sua vontade, sem levar em conta qualquer pecado”[3]. O Sínodo disse: “Há muitas outras coisas semelhantes que as Igrejas Reformadas não apenas não confessam, mas também repelem de todo coração. Portanto, este Sínodo de Dordt conclama, em nome do Senhor, a todos os que piedosamente invoca m o nosso Salvador Jesus Cristo, que não julguem a fé das Igrejas Reformadas a partir das calúnias juntadas daqui e dali, nem tampouco a partir de declarações pessoais de alguns professores, modernos ou antigos, que muitas vezes são citadas em má fé, distorcidas e explicadas de forma oposta ao seu sentido real. Mas deve se julgar a fé das Igrejas Reformadas pelas Confissões públicas destas igrejas, e pela presente declaração da ortodoxa doutrina, confirmada pelo consenso unânime de cada um dos membros de todos o Sínodo”.[4] Chegando a este ponto vou usar as próprias palavras de Olson contra ele mesmo; ele disse: “Antes de discordar, certifique-se de que você entenda”.[5]
Sei que existem pessoas que facilmente criticam os arminianos, sem ter lido uma palavra de Armínio. Mas existem também muitos evangélicos que criticam as igrejas reformadas sem ter lido uma palavra dos Cânones de Dordt. Mais uma vez: “Antes de discordar, certifique-se que você entenda”!
O propósito deste livro é simples e direto: “descrever corretamente a verdadeira teologia arminiana e começar a desfazer os danos que foram feitos a esta herança teológica, tanto por seus críticos como por seus amigos. [-] Teologia Arminiana não é um livro de argumentos contra o calvinismo [-] Espero que no futuro os críticos do arminianismo o descrevam como seus proponentes o descrevem e rigidamente evitem a caricatura ou deturpações, assim como esperam que outros tratem sua própria teologia”[6].
Olson quer expor a verdadeira teologia arminiana e desfazer os danos que foram feitos “tanto por seus críticos como por seus amigos”. Me parece que Olson deve ter mais problemas com “seus amigos”, do que com “seus críticos”, porque foram seus “amigos” que se desviaram da verdadeira teologia arminiana. Ele ainda os chama “amigos” e em outros lugares “arminianos de cabeça”. Foram eles que perverteram a doutrina arminiana e provocaram os calvinistas e reformados a reagir e refutar – com a bíblia na mão – aquelas heresias. Olson devia ser grato por causa disso, mas ele reclama dos críticos, enquanto deveria reclamar dos “amigos” que causaram essa confusão.
Pessoalmente, acredito que existe aqui uma fraqueza no livro. Olson quer defender o verdadeiro arminianismo, mas contribui para aumentar a confusão. Ele segue o teólogo reformado Alan Sell[7], que introduziu uma distinção entre o “arminianismo de coração” e o “arminianismo de cabeça”. A marca caraterística do arminianismo de cabeça é “uma antropologia otimista que nega a depravação total e a absoluta necessidade de graça sobrenatural para a salvação”.[8] Ele chama esse tipo de arminianismo “pelagiano ou no mínimo semipelagiano”.
O verdadeiro arminianismo (de coração), que é objeto de estudo deste livro – é o arminianismo original de Armínio, Wesley e seus herdeiros evangélicos. “Eles são fiéis aos ímpetos fundamentais de Armínio e seus primeiros seguidores em oposição aos remonstrantes posteriores, que se distanciaram dos ensinos de Armínio entrando na teologia liberal e também em oposição aos arminianos modernos de cabeça, que glorificam a razão e a liberdade em detrimento da revelação divina e da graça sobrenatural”[9].
Olson se distancia de Philip Limborch (1633-1712), que levou o arminianismo para mais perto do liberalismo, com o subsequente “arminianismo de cabeça”. Depois, ele diz: “Infelizmente, muitos críticos do arminianismo do século XVIII conheciam unicamente o arminianismo de Limborch, que era mais próximo do semipelagianismo do que os ensinos do próprio Armínio”[10]. E, logo depois disso, ele menciona os teólogos arminianos do século XVIII, que corromperam o verdadeiro arminianismo. Ele menciona John Taylor (1694-1761) e Charles Chauncy (1705-1787), que “representavam o arminianismo de cabeça que, com frequência e perigosamente, inclinava-se para bem próximo do pelagianismo, universalismo e até mesmo arianismo (negação da plena deidade de Cristo). Depois disso, Olson critica o grande pregador puritano e teólogo calvinista Jonathan Edwards (1703-1758), que se opôs de maneira veemente a estes homens e contribuiu para o costume dos calvinistas estadunidenses de equiparar o arminianismo e este tipo de teologia liberalizante.[11] Eu me surpreendo sobre isso e me pergunto o que os verdadeiros arminianos de coração, se existiam naquela época, disseram a respeito desse desvio do arminianismo. Jonathan Edwards estava certo quando ele agiu, com a bíblia na mão, contra essas heresias. E posso imaginar que ele observou esse desvio como um tipo de arminianismo. Isso me parece lógico. Olson pode dizer “Indubitavelmente muitos arminianos (sic!) estadunidenses e ingleses (principalmente congregacionistas e batistas) se converteram à teologia liberal e até mesmo ao unitarismo. Se o arminianismo clássico foi o responsável por isso, tal coisa é duvidosa[12] (itálico AdG)”. Claro que Armínio não é responsável por isso, mas foram os próprios arminianos (do século XVIII) que se desviaram. Olson reconhece isso e critica isso, mas não mostra muita simpatia por os reformados que criticaram isso publicamente naquela época.
Olson aponta, por um lado, para João Wesley, que foi um verdadeiro arminiano, mas por outro lado também para Charles Finney (1792-1875), que “rejeitava o calvinismo rígido em favor de uma versão vulgarizada do arminianismo que está mais próxima de semipelagianismo. Seu legado na religião estadunidense é profundo”.[13] Olson se surpreende que os Calvinistas “tendem a olhar para Finney ou como modelo de um verdadeiro arminiano ou como a estação final da trajetória teológica arminiana”.[14] Pessoalmente eu não me surpreendo em nada sobre isso, porque a confusão a respeito do arminianismo é causada pelos próprios “arminianos”. Até Olson fala sobre verdadeiros arminianos (os “de coração”) e outros arminianos (os “de cabeça”); ele continua a considerá-los como um tipo de arminianos, que se desviaram do arminianismo “clássico”, porém parece que aquele tipo de arminianismo era o mais forte, profundo e dominante no século XVIII.
Ele não acha que os calvinistas estão corretos em criticar o arminianismo como semipelagiano, mas ele mesmo deve admitir que “o Evangelho pregado e a soterológica ensinada atrás de muitos púlpitos e tribunas evangélicos e em que se crê na maioria dos bancos evangélicos, não são o arminianismo clássico, mas o semipelagianismo, se não em completo pelagianismo (itálico AdG)”.[15] “Atualmente o semipelagianismo é a teologia padrão da maioria dos cristãos evangélicos estadunidenses. Isto é revelado na popularidade dos clichês, tais como: “Dê um passo para Deus, e ele dará dois para você” e “Deus vota em você, Satanás vota contra você e você tem o voto de minerva”[16]. Olson não quer dizer que os cristãos evangélicos em outros países pregam o semipelagianismo, mas quem observa os cultos das igrejas evangélicas na televisão aqui no Brasil reconhece muito desse tipo de sinergismo do semipelagianismo.
Olson sabe que “o semipelagianismo se tornou a teologia popular da igreja Católica Romana nos séculos que precederam a Reforma Protestante, mas foi completamente rejeitado por todos os reformadores”[17]. Concordo, os Reformadores lutaram contra isso. Lutero contra Erasmo, que defendia o Livre Arbítrio; Calvino lutou contra os católicos holandeses Albertus Pigghius e Coornhert, que defendiam o semipelagianismo e o livre arbítrio e criticavam o Catecismo de Heidelberg, que falava sobre o pecado original e a depravação total. Sabemos que os Remonstrantes queriam revisar as confissões, especialmente nestes pontos. Armínio nunca chegou a ponto de falar abertamente sobre isso, mas os amigos e primeiros seguidores dele, sim. Observando tudo isso, eu não acho tão estranho que os reformados no século XVII reagiram rigorosamente contra os remonstrantes. O semipelagianismo da Igreja Católica foi banido pela porta da frente, porém parecia que os Remonstrantes queriam abrir a porta dos fundos para introduzir de novo o fermento sinergista da Igreja Católica. Não me surpreendo que os delegados do Concílio de Dordt tenham feito comparações com a doutrina do Jesuíta Luís de Molina (1535-1600) sobre a predestinação, o livre arbítrio e a fé prevista; aquela doutrina dos Jesuítas era dominante no final do século XVI; houve discussões fortes com os Dominicanos. Essas discussões foram proibidas pelo Papa em 1611. Então, há um contexto. A Holanda estava em guerra contra a Espanha, a protetora da fé católica. Essa guerra era política e religiosa. O livre arbítrio do homem e o sinergismo de Roma contra a graça de Deus e o monergismo da Reforma. Talvez os Remonstrantes quisessem um compromisso, mas os reformados, de jeito nenhum. Muitos deles morreram por causa de fé, outros fugiram por causa das perseguições da Igreja Católica com a sua Inquisição. Um compromisso era impossível.
Concordo quando Olson diz: “Armínio foi acusado de todos os tipos de heresia, mas as acusações de heresia nunca se sustentaram em nenhum inquérito oficial”[18] . A respeito de Armínio ele pode dizer isso, mas a respeito dos seus primeiros seguidores, os chamados “Remonstrantes”, ele não pode o dizer. Eles foram avaliados com base nos documentos que apresentaram e entregaram ao Sínodo de Dordt. Não somente baseado na Remonstrância, que Uytenbogaert tinha redigido junto com mais 43 Remonstrantes em 1610 depois da morte de Armínio, mas baseado também em muitos outros documentos, cartas e declarações. Todos esses documentos serão publicados na nova edição das Atas de Dordt, que é um projeto que foi lançado em 2018 por causa da comemoração do Quarto centenário do Sínodo de Dordt. O título da obra é “Acta et Documenta Synodi Nationalis Dordrectanae (1618-1619)”; 12 volumes de mais ou menos mil páginas cada volume! O documento principal que foi redigido por este Sínodo se chama Os Cânones de Dordt. Os cinco artigos contra os Remonstrantes. Esse documento demonstra, com muitos textos bíblicos, que a doutrina dos Remonstrantes não está de acordo com as sagradas escrituras.
A distância entre a teologia reformada e a teologia arminiana é enorme. Olson diz que é um mito; a teologia Arminiana não é o oposto da Teologia Calvinista/Reformada. Jacó Armínio e a maioria dos seus seguidores fiéis estão inseridos dentro do amplo entendimento da tradição reformada; de acordo com ele, os pontos comuns entre o arminianismo e o calvinismo são significantes. Com certeza existem muitos pontos comuns, mas existem também pontos insuperáveis. As igrejas reformadas, reunidas no Sínodo de Dordt, definiram estes pontos e os rejeitaram como heresias. E isso não se refere somente ao tópico da predestinação; isso se refere também à justiça de Deus, ao papel de Cristo como Mediador, ao poder regenerador do Espírito Santo, e a perseverança dos Santos. A teologia Arminiana é uma outra teologia, que não combina com a soterológica da teologia reformada, que tem como pontos principais a Depravação total, a Eleição Condicional, a Expiação Limitada, a Graça Irresistível e a Perseverança dos Santos. Os arminianos não concordam com esses pontos; e tudo isso tem a ver com a sua opinião sobre o livre-arbítrio. Um dos meus professores no seminário já disse: o livre-arbítrio é o eixo da queixa.
Olson sabe que muitas pessoas tentam superar os contrastes nos pontos doutrinários essenciais e criar uma versão híbrida: o calminianismo. Porém, ele admite: os calvinistas clássicos e os arminianos clássicos concordam que tal híbrido é impossível. [19] Eu concordo com ele.
Em uma das minhas palestras terminei com a parábola de Jesus, que se encontra em Lucas 18, 9-14. É a parábola do fariseu e do publicano. O fariseu se considerava justo; ele se comparava com os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros e o publicano. Ele apontou para as suas boas obras: jejuando duas vezes por semana e oferecendo os dízimos de tudo que ganhava. O publicano orou também. Ele nem ousava levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: ó Deus, sê propício a mim, pecador! Duas pessoas, duas crenças, ambos orando ao mesmo Deus. Um com mãos vazias, porque era miserável pecador, e outro com mãos cheias, por causa das boas obras. Um acreditava na sua depravação total, e outro se considerou digno por causa das suas boas obras. A minha pergunta é: isso faz diferença? A resposta é: sim. Faz diferença. Jesus faz diferença. O publicano desceu justificado para a sua casa, e o fariseu, não. Sinergista ou monergista? Só a Graça de Deus, só pela obra de Cristo, só pelo poder regenerador do Espírito Santo OU uma cooperação com o livre-arbítrio, que pode resistir o Espírito Santo e rejeitar a graça soberana de Deus. Faz diferença? Faz! Porque Cristo disse: sem mim nada podeis fazer.
[1] Olson, Teologia Arminiana. Mitos e Realidades (2013), p. 17;
[2] Olson, Ibid, p. 53;
[3] O sínodo rejeitou isso claramente, mas Olson ainda continua a dizer: “Podemos defender que o Deus calvinista que predestina incondicionalmente algumas pessoas para o inferno (ainda que unicamente por decretar ignorá-las na eleição), não é um Deus de amor, mas um ser supremo arbitrário e excêntrico que se preocupa apenas em exibir sua glória – mesmo à custa de destruição eterna de almas que ele criou”. Olson, Ibid, p. 52.
[4] Abram de Graaf (org.) Os Cânones de Dordt (2018), p. 69-70;
[5] Olson, Ibid, p. 53;
[6] Olson, Ibid, p. 55;
[7] Slan P.F. Sell, The Great Debate: Calvinism, Arminianism, and Salvation (1983,
[8] Olson, Ibid, p. 23;
[9] Olson, Ibid, p. 23
[10] Olson, Ibid, p.30
[11] Olson, Ibid, p. 31
[12] Olson, Ibid, p. 31
[13] Olson, Ibid, p. 35
[14] Olson, Ibid, p. 36
[15] Olson, Ibid, p. 39
[16] Olson, Ibid, p. 39
[17] Olson, Ibid, p. 39;
[18] Olson, Ibid, p. 29;
[19] Olson, Ibid, p. 86;